João Filho

Amadorismo e delírios conspiratórios marcam primeiros passos da política externa de Bolsonaro

Os sinais enviados por Bolsonaro ao mundo é de puxa-saquismo em relação aos EUA, o que contradiz o lema "Brasil acima de tudo" que marcou sua campanha.

Jair Bolsonaro presta continência à bandeira americana em evento em Deerfield Beach, Flórida (EUA)

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Jair Bolsonaro presta continência à bandeira americana em evento em Deerfield Beach, Flórida (EUA)

Foto: The Intercept Brasil

Quando Trump ligou para parabenizar Bolsonaro pela eleição, não havia nenhum integrante da campanha preparado para traduzir a conversa. O filho de um empresário amigo do presidente eleito foi escalado para a missão. A primeira conversa entre o presidente eleito e o presidente da economia mais forte do mundo foi intermediada por um youtuber de 24 anos. Parece uma cena de filme do Mazzaropi, mas é o jeitinho estabanado com que o bolsonarismo tem lidado com a política externa.

Bolsonaro mal foi eleito e já apresentou seu cartão de visitas para o mundo. E a primeira impressão não foi nada boa. Apesar do seu programa de governo prometer uma política externa “sem partido”, o que vimos até agora é ideologismo puro e simples. O capitão falastrão e seus comandados ainda não se deram conta de que não há mais espaço para retórica eleitoral e já colocaram o país em muitas saias justas mesmo antes de assumir o poder.

Como aquele tiozão do churrasco que não sabe de nada, mas tem uma opinião ruim para tudo, Bolsonaro e sua equipe causaram estragos nas relações com diversos países. Criticaram a China, o Mercosul, criaram atrito com os países árabes e ameaçaram sair do Acordo de Paris. “Mas ele tem voltado atrás de quase todas essas decisões, talquei?” Acontece que não é mais possível dizer e desdizer a todo momento como fez durante a campanha, mas Bolsonaro continua fazendo. No âmbito das relações internacionais, declarações têm efeitos imediatos e criam fatos políticos. Ficar apertando “Ctrl + Z” só reforça o quanto o novo governo desconhece questões básicas das relações exteriores.

Mesmo sabendo que diplomacia não é o forte da turma, ainda assim é espantoso ver o desdém com que tratam importantes parceiros comerciais, principalmente no momento em que a economia brasileira luta para sair do buraco.

Mercosul

“Mercosul, como foi feito, é totalmente ideológico. É uma prisão cognitiva. De novo: pergunta mal feita. (…) Mercosul não é prioridade. É isso o que você quer ouvir?” Foi assim, em tom agressivo, que Paulo Guedes tratou uma jornalista da Argentina, o país que é o nosso terceiro maior parceiro comercial e o principal destino de exportação dos nossos produtos manufaturados. Guedes disse ainda que o Mercosul é uma “prisão cognitiva“.

O bloco, criado durante o governo Collor, não é um convescote de países bolivarianos como parece crer Paulo Guedes. Apesar do bloco ter perdido o vigor nos últimos anos e precisar de reformas, ainda é importante para a economia brasileira. Como lembrou o economista Alexandre Andrada, nossa relação comercial com o Mercosul é bastante vantajosa e fundamental para a indústria automobilística internacional. Traz dinheiro e gera empregos. Talvez o nosso futuro ministro da Economia acredite que o Mercosul é uma espécie de Foro de São Paulo. Isso é o que eu chamo de “prisão cognitiva e ideológica”.

Embaixada em Israel

Em 2016, o católico Bolsonaro foi batizado pelo Pastor Everaldo no Rio Jordão em Israel. Ali o capitão começava a estreitar relações com o país e com evangélicos brasileiros. Seus filhos nutrem uma obsessão pelo exército israelense e costumam desfilar por aí com camisetas do Mossad — o serviço secreto mais temido do mundo.

Bolsonaro anunciou o plano de mudar a embaixada de Tel Aviv para Jerusalém. A decisão contraria a ONU — que considera ilegal a ocupação de Jerusalém por Israel — e reverte uma posição histórica de neutralidade do Brasil nos conflitos do Oriente Médio. Por afinidades ideológicas e motivos religiosos, Bolsonaro pretende alinhar o Brasil aos interesses do governo israelense, mesmo que para isso signifique comprar briga com importantes parceiros comerciais da região.

Se para o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, a decisão de Bolsonaro foi considerada “correta, histórica e emocionante”. Para os palestinos e os países árabes, soou como “provocação”. Os únicos países que peitaram a lei internacional e mudaram suas embaixadas para Jerusalém foram os EUA e a Guatemala. Acontece que o Brasil não é os EUA nem a Guatemala. O país mantém uma importantíssima relação comercial com os países da Liga Árabe. No ano passado, o superávit da balança comercial com esses países foi de US$ 7,1 bilhões para o Brasil, o que representa 10% do superávit da nossa balança comercial com o mundo. Nós somos hoje os maiores exportadores de carne halal, cuja produção atende normas específicas do islamismo. Os frigoríficos brasileiros se prepararam e investiram muito para atender esse mercado.

O Egito, nosso maior importador de carnes da Liga Árabe, repudiou as declarações de Bolsonaro ao cancelar a visita que o chanceler Aloysio Nunes faria ao país. A Liga Árabe enviou nota à embaixada brasileira no Cairo condenando as declarações de Bolsonaro. Após a repercussão internacional negativa, Bolsonaro tentou amenizar e disse a decisão ainda não foi tomada, mas o estrago já estava feito. Se o presidente eleito decidir de fato pela mudança da embaixada, muitos negócios brasileiros serão prejudicados e milhares de empregos podem ser perdidos.

Acordo de Paris

Delírios conspiracionistas parecem nortear a nova geopolítica brasileira. Assim como Trump, Bolsonaro contesta o incontestável aquecimento global e ameaçou retirar o Brasil do Acordo de Paris. Para ele, o país paga “um preço muito caro” para atender as exigências ambientais. Já se tornou comum ver Bolsonaro e seus filhos debochando do aquecimento global como se fosse uma teoria fabricada para atender interesses escusos, e não fruto de um consenso da comunidade científica internacional.

Em um vídeo gravado nos EUA, Eduardo Bolsonaro aparece em meio à neve defendendo o rompimento de Trump com o Acordo de Paris: “Que aquecimento global é esse? Existem fortíssimos indícios por trás do Acordo de Paris que querem fazer o quê? Eles não querem permitir que países desenvolvidos continuem a poluir, enquanto países sub poderiam continuar a poluir. Isso busca uma maior igualdade entre os países. Então, a população norte-americana seria punida por já ter se desenvolvido muito. Enfim, um conceito totalmente novo que não faz sentido. (…) É por isso que Trump saiu do Acordo, porque ele não é globalista”. Esse tipo de conspiração maluca, emergida das profundezas mais obscuras da internet, pode ser a nova cara da política internacional brasileira.

A ameaça de abandonar o acordo enfureceu Erik Solheim, chefe de meio ambiente da ONU: “A rejeição do Acordo de Paris é uma rejeição da ciência e do fato. É também uma promessa falsa, porque os políticos que apresentam a ação climática como um custo para a sociedade entenderam tudo errado.” Carlos Rittl, secretário-executivo do Observatório do Clima, uma das principais ONGs do mundo, afirmou que o rompimento com o Acordo do Paris pode trazer “sérios problemas para os interesses econômicos” e que o Brasil “passaria a ser visto como um problema para o mundo”.

A possível saída do acordo arranha a imagem do país e pode trazer problemas para a economia brasileira, principalmente nos negócios com países europeus. Não custa lembrar que nós não temos uma economia forte como a dos EUA para comprar essa briga com o resto do planeta. O presidente francês, por exemplo, defendeu na última Assembleia Geral da ONU, a exclusão de acordos comerciais com países que deixassem o Acordo de Paris.

Depois, como já virou hábito, Bolsonaro voltou atrás e garantiu que o Brasil continuará no acordo, mas continuou sendo dúbio ao dizer que é possível alcançar as metas ambientais sem precisar fazer parte de “acordo nenhum“.

China e os Brics

Durante a campanha, Bolsonaro pintou a China como um país predador que pretende dominar setores da economia brasileira. Não deixa de ser uma preocupação plausível, mas uma declaração dessas vinda do futuro presidente é assustadora. A China é o nosso principal parceiro comercial. Analistas em comércio exterior projetam um superávit de mais de US$ 25 bilhões a favor do Brasil em 2018. Os chineses lembraram o óbvio em editorial de um jornal estatal: “Se a opção do Brasil em 2019 for por seguir a linha de Donald Trump e romper acordos com Pequim, quem sofrerá será a economia brasileira”.

A patacoada com a China causou preocupação nos demais integrantes do Brics. Nelson de Sá relatou em sua coluna na Folha a repercussão na imprensa dos países do bloco: “Análises agressivas surgiram em sul-africanos e russos, chamando-o de ‘candidato da Manchúria, um político usado como boneco por outra potência’, os EUA, e até de ‘cavalo de Troia nos Brics’. A agência Tass ouviu especialistas brasileiros para arriscar que “Brasil vai reduzir sua participação nos Brics”.
Se cumprir todas as suas promessas no campo das relações exteriores, Bolsonaro causará grande instabilidade com mercados importantes, conflitos diplomáticos sérios e um enorme prejuízo aos brasileiros e à economia. É bastante provável que a maioria dessas loucuras não serão cometidas, mas o novo governo assumirá sob a desconfiança internacional.

Até agora, os sinais enviados por Bolsonaro ao mundo é de sabujismo em relação aos EUA, o que contradiz o lema “Brasil acima de tudo” que marcou sua campanha. Parece que não foi à toa que ele bateu continência para a bandeira americana. Eleger como principal aliado um país que tem adotado políticas protecionistas não é um bom caminho a se tomar. Serve para aplacar os desejos do seu eleitorado ideológico, mas coloca a economia do país em uma posição arriscada na geopolítica internacional.

A imagem transmitida até aqui é de que nossa diplomacia será marcada por muito amadorismo e ideologismo tacanho. Resta saber quem será o ministro das Relações Exteriores. Eu só espero que não seja o youtuber que mediou a conversa com Trump.

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