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A ideia fundamentalista de Damares para prevenir gravidez precoce não faz o menor sentido

Ciência já provou que pregar abstinência sexual para jovens não ajuda a prevenir gravidez. O que funciona? Educação.

A ideia fundamentalista de Damares para prevenir gravidez precoce não faz o menor sentido

A ideia fundamentalista de Damares para prevenir gravidez precoce não faz o menor sentido

Foto: Kleyton Amorim/UOL/Folhapress

Diferentes pesquisas científicas sobre sexo desprotegido e gravidez precoce trazem repetidamente a mesma conclusão: não há evidências de que programas baseados na abstinência sexual sejam eficazes como defende a ministra Damares Alves. São artigos, publicados internacionalmente de 2007 a 2019, incluindo revisões sistemáticas, metanálises, estudos epidemiológicos e até uma revisão de revisões sistemáticas.

A maior parte dos dados vêm de países desenvolvidos, mas uma metanálise feita em países em desenvolvimento tampouco conseguiu apontar efetividade nos programas centrados em abstinência.

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Os dados são tão eloquentes que, em 2017, a Sociedade Americana pela Saúde e Medicina do Adolescente emitiu um documento no qual considera que programas baseados na abstinência sexual são eticamente deficientes e deveriam simplesmente deixar de existir.

Diante das críticas ao seu programa que propõe ensinar abstinência sexual a adolescentes, Damares foi ao Twitter expressar que a proposta não seria para “impor condutas morais ou religiosas”, e que teria base em “sérios estudos e pesquisas científicas”, citando um estudo chileno de 2005. Damares recorreu ao que no mundo acadêmico é chamado de cherry-picking.

Cherry-picking (“apanhar cerejas”, em tradução ao português) significa o ato de selecionar na literatura científica um determinado resultado que reforce a visão de mundo que se está tentando defender. O estudo chileno citado por Damares é uma fruta única, lustrosa e isolada que está dentro de um cesto cheio de cerejas podres.

Como forma de se contornar resultados isolados, há outros estudos que, após uma série de critérios de seleção e qualidade, permitem analisar um tipo de intervenção em dezenas, às vezes, centenas de artigos científicos de uma só vez. Esses tipos de estudos são as revisões sistemáticas e metanálises mencionadas acima. Damares ignora isso.

Mas isso não é surpreendente. Basear-se em evidência científica e ser um membro do governo Bolsonaro já é uma contradição em termos. Afinal, trata-se da administração federal que nega fatos científicos como a mudança climática, despreza o financiamento para a pesquisa nacional e exonera um cientista do quilate de Ricardo Galvão, ex-presidente do Inpe demitido por Bolsonaro, por ele se opor à narrativa oficial da inexistência de desmatamento na Amazônia.

Modelos centrados na abstinência não informam adequadamente sobre os métodos contraceptivos, não respeitam a diversidade de visões sobre sexualidade na população, oferecem risco ao não instruir sobre como evitar a transmissão de infecções sexualmente transmissíveis, as ISTs, e não consideram que a capacidade de rejeitar o ato sexual pode ser desigual a depender do gênero e da cor da pessoa.

A concepção de que a abstinência é o único método 100% eficiente esbarra na realidade de que, para um método funcionar, ele precisa ser aplicado de forma factível, e a realidade revela que as pessoas se casam cada vez mais tarde e o sexo antes do casamento é cada vez mais aceito pela sociedade, goste-se disso ou não.

Os especialistas e a literatura indicam que a solução estaria na adoção pelas escolas de programas de educação sexual abrangente: inclusivos, cientificamente corretos e culturalmente sensíveis. Isso significa acolher, sem necessariamente reforçar, a diversidade sexual que já existe na sociedade e afeta os nossos jovens de forma inequívoca: mais de um quarto deles já teve relação sexual no nono ano, segundo pesquisa do IBGE de 2015.

Apesar da oposição dos bolsonaristas a esse tipo de intervenção, que são associados, sem base verossímil, à existência de “kits gays”, esses programas abrangentes estão internacionalmente associados a menores taxas de gravidez precoce e maior proteção em relação às ISTs, quando são avaliados, inclusive nos países em desenvolvimento, como o nosso.

Vale dizer que a saúde pública brasileira tem estudado o fenômeno de forma extensa, com grande acúmulo de pesquisas qualitativas e quantitativas, e seria necessário, para um programa federal eficiente, que os especialistas da área fossem convocados.

Não podemos esquecer da principal variável modificável associada com a gravidez infantil: a escolaridade. Quanto maiores as taxas de instrução da população e, especialmente, das adolescentes, menor a chance de ocorrer uma gravidez nesta fase da vida. Ou seja, a velha máxima de que se quisermos mudar esse país, o primeiro caminho é pela escola continua a valer também neste caso.

Por fim, é importante dizer que a opção pela abstinência é pessoal e deve ser respeitada – da mesma forma que a opção contrária. O que não pode ser admitido neste país é que tomemos decisões políticas baseadas em valores fundamentalistas e nos abstermos de evidências científicas sólidas.

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