João Filho

A politização da tragédia por políticos e jornalistas

Quem culpa as vítimas do incêndio no prédio em SP e criminaliza todo e qualquer movimento social passa pano para a única razão do que ocorreu: o descaso dos governos em garantir um direito constitucional

A politização da tragédia por políticos e jornalistas

barracas-1

A tragédia do desabamento do prédio em São Paulo não trouxe à tona somente a omissão do poder público em relação à situação calamitosa da falta de moradia no país, mas também o oportunismo canalha de políticos, militantes reacionários nas redes sociais e setores da imprensa, que se aproveitaram do caso para criminalizar movimentos sociais em um momento em que a única coisa que se esperava era solidariedade. A tragédia foi usada politicamente por aqueles que pretendem deslegitimar a luta por moradia, que nada mais é do que um direito garantido pela Constituição.

Relatos de moradores indicam que as 146 famílias que moravam na ocupação tinham que pagar até R$ 400 de aluguel para os líderes do Movimento Luta por Moradia Digna, dinheiro que serviria para bancar a manutenção do edifício. Mas o que se via era um prédio sujo, cheio de ratos, com banheiros sem condições de uso, instalações elétricas precárias e frequente falta de energia.

Como se já não bastasse a omissão do poder público em garantir uma moradia digna a esses cidadãos, líderes de movimento social se aproveitaram dessa vulnerabilidade para faturar em cima. Essa exploração é grave e merece a atenção da imprensa e das autoridades, sem dúvida, mas continua sendo um fato menor diante da tragédia do desabamento do prédio e da situação calamitosa de sem-teto não só daquele edifício, mas de todo o Brasil.

Mas autoridades, oportunistas de direita e parte da imprensa transformaram esse caso em uma das principais pautas da tragédia, aproveitando a ação de alguns estelionatários travestidos de movimento social para criminalizar toda a luta por moradia.

O sempre oportunista João Doria Jr. não perdeu a oportunidade de reforçar publicamente a sua babaquice. Sem ter absolutamente nenhuma prova, o ex-prefeito tucano afirmou que o prédio foi invadido por uma facção criminosa que utilizava o local para tráfico de drogas. Um prédio desabou no centro da cidade, famílias perderam o pouco que tinham, e o candidato ao governo de São Paulo aproveita o momento para atiçar o datenismo na sociedade. A gestão do ex-prefeito foi procurada para dar mais explicações sobre a acusação jogada ao ar, mas, claro, preferiu não comentar.

Michel Temer foi ao local do desabamento, mas foi escorraçado pela população sob gritos de “golpista” e chutes na lataria do seu carro. O homem que capitaneou o congelamento dos investimentos sociais por 20 anos foi lá para prestar solidariedade às vítimas dessa tragédia social, “afinal estava em São Paulo e ficaria muito mal não comparecer”, segundo o próprio. O governador paulista Márcio França afirmou que era uma “tragédia anunciada” e que ali havia “muita gente com vício”, “muita prostituição”, procurando rotular os moradores do prédio que havia acabado de desabar.

Perguntado sobre quais medidas o governo do estado deveria adotar para evitar novas tragédias, França disse que é necessário “convencer as pessoas a não morar desse jeito”. É como se as pessoas decidissem morar naquelas condições precárias por vontade própria e bastaria ao poder público convencê-las do contrário. É como se todos ali fossem como João Doria Jr., um riquinho que poderia escolher mil lugares, mas preferiu invadir uma área pública para construir sua mansão.

A onda de criminalização dos movimentos dos sem-teto que sucedeu a tragédia criou o ambiente perfeito para a criação de boatos nas redes sociais. Um texto passou a circular afirmando que o Boulos, líder do MTST e candidato do PSOL à presidência, comandava a cobrança dos aluguéis no prédio e faturava até R$ 1 milhão por mês. O filhotinho de cruz-credo, Eduardo Bolsonaro, pegou carona no boato e produziu o que se espera dele: chorume. Poupou o poder público e culpou o MTST e o PSOL, que nunca tiveram nenhuma ligação com a ocupação do prédio.

Mesmo alertado sobre a fake news, o deputado a manteve no ar. Produzir mentiras enquanto acusa adversários de mentir é a principal estratégia eleitoral da família Bolsonaro. Trata-se da mesma estratégia vitoriosa de Trump.

O panfleto de direita O Antagonista, de propriedade da empresa de investimentos Empiricus, fez uma singela pergunta aos seus leitores: “Se a perícia confirmar que o prédio no centro de São Paulo pegou fogo e desabou por causa de moradores que fizeram uma lambança com álcool na hora de cozinhar, eles serão responsabilizados ou a miséria, assim como a riqueza, torna os cidadãos inimputáveis no Brasil? É só uma pergunta.” Em um país cujo sistema punitivista funciona como uma máquina de moer pobre, perguntar se a miséria torna o cidadão inimputável não é apenas estupidez, mas má-fé com pitadas de psicopatia. É só mais um pensamento corriqueiro na cabecinha de quem deseja criminalizar os pobres apenas por serem pobres que lutam por seus direitos.

Narloch, autor de Guia do Politicamente Incorreto — um livro panfletário repleto de fake news dedicado a reescrever a história sob o ponto de vista direitista —, também usou sua coluna na Folha para politizar a tragédia. Intitulado “Desabamento revela a máfia do movimento sem-teto”, o texto não dedica uma vírgula ao déficit habitacional no país, apenas trata de colocar no mesmo saco todos os movimentos de luta por moradia e equipará-los às milícias do Rio de Janeiro. Para ele, a diferença entre quem luta para fazer valer um direito constitucional e criminosos milicianos é que um “tem marketing de movimento de esquerda, o outro não. Um tem apoio da imprensa e de ONGs; o outro enfrenta o ódio desses grupos.” Foi com essa reflexão sofisticadíssima que o jornalista e filósofo carimbou como criminosos todos os movimentos que lutam por um local digno para morar.

Quem culpa as vítimas e pretende confundir a sociedade misturando movimentos sociais sérios com movimentos picaretas, passa pano para a única razão da tragédia: a falta de ação das três esferas governamentais no cumprimento da obrigação de oferecer moradia digna para todos os seus cidadãos.

Nem todo mundo pode se dar ao luxo de pagar por notícias neste momento.

E isso está tornando cada vez mais difícil financiar investigações que mudam vidas.

A maioria dos jornais lida com isso limitando o acesso a seus trabalhos mais importantes por meio de assinaturas.

Mas no Intercept Brasil, acreditamos que todos devem ter acesso igual à informação.

Se você puder, há muitos bons motivos para nos apoiar:
1) Nosso objetivo é o impacto: forçamos os ricos e poderosos a respeitar pessoas como você e a respeitar a lei
2) Somos financiados pelos leitores, não por corporações, e somos sem fins lucrativos: cada real vai para nossa missão de jornalismo sem rabo preso, não para pagar dividendos
3) É barato, fácil e seguro e você pode cancelar quando quiser

Escolha fortalecer o jornalismo independente e mantê-lo disponível para todos com uma doação mensal. Obrigado.

FAÇA PARTE

Faça Parte do Intercept

Inscreva-se na newsletter para continuar lendo. É grátis!

Este não é um acesso pago e a adesão é gratuita

Já se inscreveu? Confirme seu endereço de e-mail para continuar lendo

Você possui 1 artigo para ler sem se cadastrar